segunda-feira, 29 de março de 2010

Fatalidade das coisas

Postado por Monique Arya 0 comentários

Os séculos desfilavam num turbilhão e, não obstante, porque os olhos de delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, flagelos e delicias, desde essa coisa que se chama glória até essa outra que se chama miséria, e via o amor multiplicando a miséria, e via a miséria agravando a debilidade. Aí vinha a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba e a enxada e a pena,úmidas de suor, e a ambição, a fome, a vaidade, a melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as varias formas de um mal, que ora mordia a víscera, ora mordia o pensamento e passeava eternamente as suas vestes de arlequim em derredor da espécie humana. A dor cedia alguma vez, mas cedia a indiferença, que era um sono sem sonho, ou ao prazer, que era uma dor bastarda.
Então o homem, flagelado e rebelde,corria diante da fatalidade das coisas, atrás de uma figura nebulosa e esquiva, feita de retalhos, um retalho de impalpável, outro de improvável, outro de invisível, cosidos todos a ponto precário, com a agulha da imaginação, e essa figura, nada menos que a quimera da felicidade, ou lhe fugia perpétuamente, ou deixava-se apanhar pela fralda e o homem a cingia ao peito e, então, ela ria, como um escárnio, e sumia-se, como uma ilusão.



Texto retirado da obra Memórias Póstumas de Brás Cubas.
Machado de Assis
 

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